Segundo juíza, há quem queira viver “primavera-perpétua” de gastos
Desde dezembro de 2014, funciona no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e de Cidadania Superendividados (Cejusc/Super), para solucionar casos de inadimplência e tentar mediação entre credores e devedores.
Em três anos de atuação, foram realizadas 1.352 audiências de conciliação relacionadas ao superendividamento, que por fim resultaram em 464 acordos. Segundo o serviço, uma solução consensual foi possível em 45% dos casos. Três de quatro demandas são processos que envolvem bancos. A seguir, veja entrevista, por escrito, com a juíza Caroline Lima, coordenadora do Cejusc/Super, que alerta para os riscos do crédito fácil e do consumo compulsivo.
Consultando a sua memória de processos e experiência mediando acordos, por que o superendividamento acontece?
Caroline Lima: O superendividamento pode ter diversas causas. Pode ser algo episódico, não planejado e que envolva uma despesa extra considerável, como uma doença na família, o desemprego etc. Quando a pessoa não tem uma reserva de emergência, o que ocorre com a maioria dos brasileiros, o impacto pode ser desastroso. Mas o superendividamento também decorre da falta de planejamento financeiro, da desorganização costumeira com as finanças pessoais. A maioria das pessoas não recebeu educação financeira na escola ou na família e isso tem reflexos ao longo da vida, tornando essas pessoas mais vulneráveis ao superendividamento.
Que tipo de superendividamento preocupa mais a senhora? Por quê?
Caroline Lima: Sem dúvida temos visto muitos idosos superendividados. É preocupante porque o problema ocorre justamente num momento da vida em que as despesas são maiores e as pessoas envolvidas estão mais fragilizadas. Trabalhamos em parceria com a Central Judicial do Idoso com o objetivo de acolher essas pessoas e fazer o encaminhamento ao programa.
Segundo nota do Cejusc/Super, 45% das demandas foram resolvidas. Quando é mais fácil obter conciliação entre devedores e credores? Quando é mais difícil?
Caroline Lima: Quando o participante do programa cumpre todas as etapas (oficina de educação financeira, orientações financeiras individuais, grupos temáticos, iniciativas psicossociais) e o credor participou do workshop destinado aos representantes das instituições financeiras há mais chances de celebração de um bom acordo, um acordo sustentável que realmente possa reorganizar as finanças pessoais do participante. De outro lado, quando o caminho do programa não é integralmente percorrido ou quando o credor não se compromete da forma esperada, diminuem as chances da composição entre eles.
Há alguma evidência de que a recessão econômica agravou o quadro de superendividamento ou, pelo ao menos, aumentou a procura pela mediação?
Caroline Lima: Não observamos essa evidência. Isso porque o superendividamento é um fenômeno que não se relaciona diretamente a momentos de recessão econômica no país. Evidentemente, o desemprego por ser um gatilho ao superendividamento, mas a experiência tem demonstrado que há outros fatores mais relevantes. Vemos que, por vivermos em uma sociedade de consumo, as pessoas podem se superendividar apenas pelo fato de possuírem alguma renda, ou seja, por terem acesso ao crédito. Ao longo desses quase quatro anos de programa, verificamos que fatores sociais como falta de políticas públicas voltadas para educação financeira, celebração do consumo como se vivêssemos em uma ‘primavera-perpétua’ (onde tudo são flores); práticas que exaltam o belo, o lúdico, o prazeroso; criação de necessidades pelo marketing; difusão da crença de que o consumidor será considerado bem-sucedido, bonito ou feliz se obtiver determinado produto e fatores pessoais como consumo compulsivo e o desejo de viver acima das de suas possibilidades econômicas são os maiores motivos de agravamento da situação de superendividamento dos cidadãos. Fatores externos, políticas econômicas governamentais, por exemplo, não necessariamente resultam em acréscimo de atendimentos. A falta de educação financeira aliada à concessão irresponsável de crédito são os principais vetores do superendividamento no Brasil.
Qual foi o maior volume de dívida de uma pessoa física que o Cejusc/Super tentou a conciliação? Obteve sucesso?
Caroline Lima: Importante registrar que a relevância do volume da dívida está relacionada à renda do devedor. Para quem ganha em torno de R$ 2 mil, uma dívida de R$ 80 mil é relevante. Há outros com renda elevada e dívidas maiores ainda. Já acompanhamos participantes que fizeram acordo envolvendo mais de R$ 400 mil de dívidas. Para fins de superendividamento, consideram-se dívidas relacionadas ao consumo (compra de bens, cartão de crédito, empréstimo consignado etc). Não são levados em conta financiamento imobiliário e dívidas de natureza tributária. Essas não são abarcadas pelo programa.
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